quinta-feira, 3 de julho de 2014

A Moça no Vento


Penso nas tardes em que ouvia os ventos no varal assoviarem substâncias que escorriam as próprias tardes.

Penso nos olhos dela, que nunca me viram, naquela moça que passou feito um solo de saxofone e que me Coltrane os pulsos.

Penso nos vagabundos em quartos escuros escrevendo poemas, noturnos, acordando numa manhã azul.

Penso nas horas que inventamos para tanta trivialidade, no tempo cuspindo minha infância nas ondas do mar; nesse mesmo tempo que nos separa e volta a nos juntar, como um alquimista destilando substâncias.

Penso no soco que levei quando deixei para trás meu rosto frágil e seco, imolado pela partida; e no meu corpo devastado, dependurado no tempo, escorrido de substâncias sob o sol.

Penso no mar,
no ar das montanhas
e nas tantas canções
que dancei.

Penso nas tardes
ardendo ao sol,
nas tardes em que me vi
bem no fim.

Penso, e o pensamento é um rio selvagem vago e denso como os olhos daquela moça, que passam no repasto doentio, olhos que nunca me viram (e se vissem, o que saberiam aqueles olhos?), mas que me Coltrane os pulsos, num sopro rouco de saxofone.

Penso nos ventos,
ventos com chuva
e com terra,
nas tormentas que incendeiam
corações;
e nos ventos com ventos
que nos arrebatam à metafísica.

Penso nos viajantes das tempestades
trovejando no tempo negro
e reluzindo
no branco dos relâmpagos,
no ar repleto de gritos
e segredos solitários.

Penso ainda nos que foram vistos correndo com o vento, sim, sempre pensarei nos que foram levados ou que talvez levem, como Hermes, algumas palavras nos vendavais que espalham as folhas de algum processo arquivado cujas páginas perderam-se estranhamente no ar.

Penso no mesmo vento que assovia no varal, agora mansinho, como velhos em cadeiras de balanço balançando a solidão.

Penso na brisa fresca de quando tudo começou, no que esqueci de dizer à moça que atravessou meus olhos no temporal, num solo de saxofone, pois tudo foi levado por esse temporal. 

Penso que, enquanto no varal apanho a roupa, descubro-me nu, correndo com o vento, correndo e rodopiando na viração (e do céu uma rajada arrebata-me num solo de saxofone).


(Luciano Vivacqua) 05/10/04

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