quinta-feira, 10 de julho de 2014

Senadores Também Vão ao Cinema (letra de música)

Penso em letras de música como possíveis poemas. Possíveis, porque nem sempre o são. Os poemas podem existir sem a música, as músicas sem as letras e uma letra de música pode não utilizar a linguagem poética, função poética, ou linguagem conotativa. O que acontece, na maioria das letras de música, é a variação que, ora é denotativa, ora é conotativa em uma única letra. Entretanto, os chavões, mesmo na linguagem conotativa, podem ser encarados como denotativos, tamanho o uso, o que faz a letra cair em uma linguagem corriqueira. Então, o que é letra de música, e o que é poesia? Eis a questão. Tem excelentes letras de músicas que não são poesia, mas que emocionam. E excelentes poemas musicados que causam estranhamentos. O fato é que as melodias, ou seja, a música, a harmonia e etc., potencializam as letras ou os poemas. É só ouvir The Doors ou Bob Dylan para se ter uma boa ideia de alguns poemas que viraram músicas. Além disso, existe o gosto. E como dizem por aí, há gosto pra tudo. Bom, não estou fazendo aqui uma apologia à poesia, mesmo porque música e poesia são linguagens distintas. Mas a letra de música tem que ter um algo a mais. A letra da música chama a minha atenção, talvez, tanto ou mais quanto o arranjo, o estilo, a voz do (a) cantor (a)... 
Sem mais delongas, escrevi essa letra de música e compus no violão um estilo folk, quase country ( segue abaixo o link do vídeo no youtube, que foi gravado com uma câmera bem simples). Eu poderia falar um pouco sobre a mensagem da letra, mas prefiro deixar a cargo do leitor / ouvinte.


https://www.youtube.com/watch?v=0KDCUWFrEZchttps://www.youtube.com/watch?v=0KDCUWFrEZc

Senadores também vão ao cinema




Oh, o céu é uma nuvem de chuva
                    
E as casas já estão desertas.
                                                                                           
As ruas rachadas, o tempo parado, teus filhos brincam de roda


O secreto das coisas se mostra num furacão



Um cadáver jaz no asfalto
                   
Seu corpo é óleo e sangue
                                                                                                
Os carros não param, homens praguejam, seus filhos vão pra escola
                                
Os mortos sem rostos são vozes na nossa nação

                                                                
E um grito se ergue na noite, estátuas antigas se movem
                                                      
Ouve-se um blues nas montanhas, o golpe da foice

E um grito se ergue na noite, estátuas antigas se movem
                                                      
Ouve-se um blues nas montanhas, o golpe da foice



As paredes são feitas de musgo
                 
O medo é roda gigante
                                                                                  
O sol não se põe, os rios não correm, bebês já ficaram velhos
                                                            
O voto do povo é bilhete em sessão de cinema



Oh, o céu é relâmpago e vento
                     
Os pássaros já foram embora
                                                                                           
Os bancos vazios, as lojas faliram; sem luz, as cidades paradas
                                                       
Voa no vento o dinheiro e acende fogueiras

                                                    
E um grito se ergue na noite, estátuas antigas se movem
                                                           
Ouve-se um blues nas montanhas, o golpe da foice

                                                                      
Lembranças das ondas do mar rugindo histórias sem fim
                                                       
De linho o céu e estrelas 

Seu brilho em mim

quinta-feira, 3 de julho de 2014

DIZER O INDIZÍVEL (a Alphonsus de Guimaraens)



Dizer o indizível
é suportar a dor
das unhas que pomos
nas palavras,

qual pomos que tombam ,
noturnos,
onde não somos,
mas suspeitamos;

dizer as cores
com as consoantes
ou insetos
que nos perturbam
o sono;

dizer como aves que grasnam,
com a dissonância
da glote
quando deglutem palavras.

Dizer o indizível
e suportá-lo
é ainda mais difícil,
pois como alvos na linha de tiro
nos pomos.


(Luciano Vivacqua)

A Moça no Vento


Penso nas tardes em que ouvia os ventos no varal assoviarem substâncias que escorriam as próprias tardes.

Penso nos olhos dela, que nunca me viram, naquela moça que passou feito um solo de saxofone e que me Coltrane os pulsos.

Penso nos vagabundos em quartos escuros escrevendo poemas, noturnos, acordando numa manhã azul.

Penso nas horas que inventamos para tanta trivialidade, no tempo cuspindo minha infância nas ondas do mar; nesse mesmo tempo que nos separa e volta a nos juntar, como um alquimista destilando substâncias.

Penso no soco que levei quando deixei para trás meu rosto frágil e seco, imolado pela partida; e no meu corpo devastado, dependurado no tempo, escorrido de substâncias sob o sol.

Penso no mar,
no ar das montanhas
e nas tantas canções
que dancei.

Penso nas tardes
ardendo ao sol,
nas tardes em que me vi
bem no fim.

Penso, e o pensamento é um rio selvagem vago e denso como os olhos daquela moça, que passam no repasto doentio, olhos que nunca me viram (e se vissem, o que saberiam aqueles olhos?), mas que me Coltrane os pulsos, num sopro rouco de saxofone.

Penso nos ventos,
ventos com chuva
e com terra,
nas tormentas que incendeiam
corações;
e nos ventos com ventos
que nos arrebatam à metafísica.

Penso nos viajantes das tempestades
trovejando no tempo negro
e reluzindo
no branco dos relâmpagos,
no ar repleto de gritos
e segredos solitários.

Penso ainda nos que foram vistos correndo com o vento, sim, sempre pensarei nos que foram levados ou que talvez levem, como Hermes, algumas palavras nos vendavais que espalham as folhas de algum processo arquivado cujas páginas perderam-se estranhamente no ar.

Penso no mesmo vento que assovia no varal, agora mansinho, como velhos em cadeiras de balanço balançando a solidão.

Penso na brisa fresca de quando tudo começou, no que esqueci de dizer à moça que atravessou meus olhos no temporal, num solo de saxofone, pois tudo foi levado por esse temporal. 

Penso que, enquanto no varal apanho a roupa, descubro-me nu, correndo com o vento, correndo e rodopiando na viração (e do céu uma rajada arrebata-me num solo de saxofone).


(Luciano Vivacqua) 05/10/04